Autor: Hud Cunha
Obra: O Tratado dos Opostos (e-book Kindle)
Clube do Leitor BR: Hud, “O Tratado dos Opostos” nasce de um mergulho profundo em si mesmo. Logo nas primeiras páginas, você diz que escreveu para “juntar seus próprios pedaços”. Como foi esse processo de transformar dor em poesia?
Hud Cunha: Foi uma mistura de catarse e sobrevivência. Escrever foi a forma que encontrei de dar nome ao que eu sentia e, ao mesmo tempo, de não enlouquecer com isso. Durante muito tempo vivi desconectado de mim — trabalhando demais, tentando me encaixar, tentando dar conta de tudo. Até que veio uma pausa forçada: um câncer, que me fez repensar tudo. Quando o corpo grita, é porque a alma já está cansada de sussurrar. Depois do tratamento, percebi que ainda não estava bem, só estava funcionando. Foi aí que comecei a escrever de verdade, como quem precisa se olhar no espelho e, pela primeira vez, não desviar o rosto. A poesia foi esse espelho. Dura, mas libertadora. Quando a gente escreve, o que antes estava só dentro da cabeça ganha corpo — e passa a te encarar. E nesse confronto, algo muda. A dor não some, mas vira matéria. E quando vira matéria, vira arte.
Clube do Leitor BR: Em muitos poemas, percebemos a tensão entre o real e o imaginário — essa “linha tênue entre sentimentos e ações”. A arte foi um refúgio ou uma forma de enfrentamento?
Hud Cunha: Acho que foi os dois — e às vezes os dois ao mesmo tempo. A arte me protegeu quando eu precisei respirar, mas também me empurrou pro abismo quando eu precisava encarar o que doía. Ela tem essa coisa de ser generosa e cruel ao mesmo tempo. Quando escrevo, não estou fugindo. Estou atravessando. A arte não me anestesia — ela me coloca de frente pra realidade, só que com outras cores, outras texturas. Me permite dizer o que eu não saberia dizer de outro jeito, porque há dores que não cabem em discurso, só em imagem, ritmo ou silêncio. O real e o imaginário, pra mim, não são opostos: são dois lados de uma mesma travessia. É nessa fricção que nasce O Tratado dos Opostos. O livro é, de certo modo, esse território do “entre” — entre o que é vivido e o que é sonhado, entre o que é suportável e o que é inventado pra suportar. A arte vive exatamente aí, nesse fio de tensão. Ela traduz o que é real sem matar o imaginário, e faz do imaginário uma forma mais sincera de dizer o real. Talvez seja isso que eu busquei no livro: não escolher um dos lados, mas aprender a dançar entre eles.
Clube do Leitor BR: Em versos como “Quase vivi, / Quase fui feliz”, existe uma dor do “quase”. Você acha que essa incompletude é o que move o poeta?
Hud Cunha: Totalmente. Acho que o “quase” é o combustível da vida. O poeta vive nesse entrelugar — entre o que sente e o que não consegue dizer, entre o que quer e o que não alcança. Durante muito tempo eu vivi com essa sensação de que tudo estava pela metade, de que nada era suficiente. Isso dói, claro, mas também é o que me move. O “quase” é o espaço da busca, e sem busca não existe criação. A poesia nasce dessa falta. A gente escreve porque quer tocar algo que sempre escapa — e é justamente nesse movimento que mora a beleza. No fundo, acho que viver é isso: nunca estar inteiro, mas continuar tentando.
Clube do Leitor BR: O amor aparece como tema central — ora idealizado, ora corrompido pela realidade. Há em seus versos algo como uma tentativa de conciliação entre esses opostos?
Hud Cunha: O amor é um tema que me atravessa completamente. Acho que ele é o maior paradoxo de todos. O amor é sublime e humano, divino e bagunçado, encantador e destrutivo. E é justamente por isso que ele é tão bonito. Pra mim, o amor não é algo que se define — é algo que se vive. Ele vai além do rótulo, além da rotina. Às vezes, é até massacrado por ela. Mas o amor verdadeiro sobrevive, porque tem coragem de suplantar o reboque que é a vida. Não acho que exista uma conciliação entre o amor ideal e o real. Acho que existe um reconhecimento. Entender que o amor não é perfeito, não é constante, não é lógico — e, ainda assim, é o que dá sentido a tudo. No livro, o amor aparece como força e como ferida. Porque amar é isso: se permitir ser vulnerável, mesmo sabendo que pode doer.
Clube do Leitor BR: Em um dos trechos mais marcantes, você diz: “O que é a arte senão a invenção de sentimentos.” O que essa frase representa para você hoje?
Hud Cunha: Hoje vejo essa frase como um respiro e, ao mesmo tempo, como um lembrete do porquê eu escrevo. A arte é o espaço onde a gente inventa novas formas de sentir — e, no meu caso, foi também o caminho que encontrei para transformar o que me atravessa em algo que pudesse tocar o outro. A arte não é fuga, é tradução. É o gesto de transformar o caos em linguagem, o medo em metáfora, a dor em beleza. Mas também é o ato de dar forma ao invisível — às vezes de modo lúdico, às vezes cru, visceral, realista. O importante é não deixar que o sentimento fique apenas no pensamento. É trazê-lo pro mundo, dar corpo, som, imagem e textura. Com O Tratado dos Opostos, eu quis justamente gerar emoção e reflexão, provocar um olhar para os extremos — o real e o imaginário, o leve e o denso, o lúdico e o visceral. Essa linha entre um e outro percorre toda a obra: parte está na poesia, parte na prosa e nos textos mais confessionais. Em todos, o objetivo é o mesmo — dar forma aos sentimentos e transformá-los em algo coletivo, que possa ser vivido e sentido por outras pessoas, em diferentes linguagens. No fim das contas, a arte é isso pra mim: o lugar onde a dor encontra sentido, o amor encontra voz e o sentir encontra forma.
“O Tratado dos Opostos” é uma obra que revela a poesia como rito de reconstrução — um livro que transforma dor em beleza e devolve ao leitor o poder de nomear seus próprios opostos.
Entrevista realizada pelo Clube do Leitor BR — espaço de afeto, leitura e voz para escritores contemporâneos.

