Entrevista:
Lígia Barbosa

Como surgiu a inspiração para criar o mundo distópico de “Em Solo Vermelho” e quais foram as suas principais influências ao escrever essa obra?

R: A história, estruturalmente falando, veio a mim através de um sonho. Porém, acredito que isso se deu em função de minha investigação literária, na época. Aconteceu em 2015, mais ou menos. Lembro-me que alguns temas que buscava recorrentemente eram violência, tráfico humano e a continuidade da escravidão contemporânea. Além disso, consumi algumas sagas com “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins, “Divergente”, de Veronica Roth e até mesmo “Coração de tinta”, de Cornelia Funke. Esta última tem uma narrativa diferente, mas com uma construção de personagens que também foram importantes para mim.

A protagonista, Sarah, é uma personagem corajosa e determinada, que luta por sua própria liberdade. Como você a desenvolveu e quais são as principais características dela com as quais você espera que os leitores se identifiquem?

R: Sarah é uma personagem muito valiosa para a minha história pessoal, pois sempre fui muito interessada em grandes personagens femininas, que soubessem lutar pelo próprio espaço no mundo. O protagonismo feminino poderoso sempre foi uma grande questão para mim. Até mesmo como artista plástica e visual, minha pesquisa sempre foi voltada para histórias de mulheres potentes e muito fortes.
Então, ao escrever “Em solo vermelho”, não poderia ser diferente. Procurei criar diversas características capazes de suprir minhas necessidades e curiosidades enquanto leitora, afinal, além de escritora, também sou uma leitora curiosa. Portanto, busquei ser fiel a essa veia latente para desenvolver a narrativa da história. Para construí-la da maneira que eu queria, também me inspirei em mulheres que admiro muito, inclusive a minha bisavó, Iracema, que é uma pessoa que jamais conheci, porém, que sempre me inspirou, por meio das histórias contadas por minha família.
Acima de tudo, espero que Sarah passe para os leitores o efeito da luta, e não me refiro a combates físicos, mas às lutas pessoais, que envolvem questões de caráter e ideais, mesmo em situações extremas. O que mais anseio, é que mulheres leiam as histórias e confiem nesta personagem, que é a minha heroína imperfeita. Afinal, nem todos os heróis precisam ser perfeitos e, talvez, esse seja o ponto chave da conexão, pois a imperfeição nos une e instiga.

Antúrio II, também conhecido como Em Solo Vermelho, é o cenário central da trama. Como você criou essa reserva de terras e qual é a importância desse ambiente na história?

R: Acredito que essa foi uma das partes mais complicadas para mim, pois imaginei um cenário difícil, mas que também fizesse uma conexão com a história de vida de Sarah. Um contexto de muita luta. Então, nada, absolutamente nada, poderia ser simplesmente fácil. Antúrio II é uma reserva de terras que possui condições de vida muito precárias e poucas leis. Pensando nisso, imaginei um cenário muito tenso e complexo para orbitar a construção psicológica de Sarah, que foi uma pessoa que precisou lutar desde muito nova. E não apenas ao ser vendida, quando criança, pois a estrutura de vida das terras vermelhas é desafiadora desde o nascimento, para todas as pessoas que habitam o lugar.

Pensando sobre isso, você consegue se imaginar vivendo, desde sempre, com privações e dificuldades em um contexto, muitas vezes, de miséria e escravidão? Este é um lugar que requer muita coragem. Até mesmo a religiosidade é um fator significativo, que se atrela à ideia de um solo de um vermelho constante, saturado e que, quando chove, parece estar encharcado de sangue. Porém, aí entra também a questão da perspectiva, pois, se para alguns, o sangue representa a morte, para outros, corresponde à vida.

Além da sobrevivência, quais são os outros temas que você aborda no livro “Em Solo Vermelho” e o que espera que os leitores reflitam sobre esses assuntos ao longo da leitura?

R: A sobrevivência é a chave da narrativa, mas existem outros temas essenciais, como servidão, busca por liberdade, infâncias roubadas, escravidão sexual, violência, degradação moral, luto e o egoísmo humano. Acredito que o meu maior apelo narrativo provenha da reflexão sobre a natureza humana e a fragilidade dos nossos desejos e escolhas. Cada ação traz uma reação igualmente potente. Além disso, um ponto significativo, para mim, é o fato de que, embora Sarah seja uma vítima das circunstâncias, ela é muito mais do que isso. Assim como todos nós, ela é intensa, complexa e muito determinada.

O livro retrata uma sociedade caótica e perigosa. Como você abordou a construção desse ambiente e como isso impacta os personagens e a trama em geral?

R: Antúrio II é para os fortes. Quem leu a história sabe muito bem disso. A questão é que essa sociedade teve que se desenvolver, por séculos, contando com leis orais não muito bem determinadas e com o fato de que todas as decisões foram baseadas na força e/ou nos acordos feitos de pessoa para pessoa. Além disso, o contexto de privação aumentou muitas características que existem em qualquer sociedade, porém, potencializadas em uma reserva, da qual não há perspectivas de saída.

Além disso, todos os personagens são submetidos a outro, que comanda de forma ferrenha Antúrio II. Trata-se do Mestre Soberano, que julga e sentencia o que é levado ao seu conhecimento, por meio de decisões que, muitas vezes, não são justas. Um medo recorrente dos habitantes daquele lugar é ser sentenciado ao Círculo do solitário, que pode dar, a qualquer um, uma passagem sem volta à Fortaleza dos Malditos. Por isso, é possível afirmar que em Antúrio II não há leis efetivas, mas há controle através do medo.

Logo, é seguro dizer que esse contexto social impacta diretamente na narrativa de cada um dos personagens que, muitas vezes, precisam recorrer à força para conseguirem o que querem. Então, a história sugere coisas que sempre penso a respeito do desenvolvimento das sociedades, que não são capazes de evoluir de maneira sólida em contextos de privação. Acredito que a oferta de uma estrutura baseada em segurança, principalmente para crianças, através da alimentação adequada, educação de qualidade, afeto e cultura acessível, sejam fatores essenciais.

A busca por liberdade é um tema presente em “Solo Vermelho”. Como você trabalhou esse conceito ao longo do livro e o que você espera que os leitores reflitam sobre a importância da liberdade durante a leitura?

R: Tenho convicção de que a liberdade é um direito inerente ao ser humano, que todos temos direitos e deveres que geram contextos sociais saudáveis e pacíficos e que, quando falamos de escravidão, é preciso refletir sobre passado e possibilidades de futuro com prosperidade. Não podemos nos esquecer que, como humanos, ainda não chegamos lá. A escravidão ainda existe de muitas formas diferentes, seja trabalhista, sexual — que atinge pessoas em diversas idades no mundo inteiro — ou psicológica, em contextos de gênero, que ainda são identificáveis de maneira velada ou não. Por isso, essa é a chave para o livro. É preciso pensar a respeito de nossas atitudes dentro da sociedade e isso não é apenas sobre nós, mas também sobre o outro. Enquanto todos não forem livres, a sociedade continuará amarrada e não poderá ser chamada de plena.

O acordo como moeda de troca é um elemento fundamental na trama. Pode nos contar um pouco mais sobre como isso se desenrola na história e o que você acredita que os leitores possam aprender sobre esta dinâmica?

R: “Em solo vermelho” não há dinheiro. Isso não existe mais, não para os sobreviventes do fim do mundo. Ao longo do livro, compreendemos melhor sobre o “fim do mundo” que reuniu essas pessoas, que encontraram no “acordo” a forma para conseguirem o que querem. No livro, podemos observar traços econômicos de sociedades perdidas, mas o que vigora é a lei do acordo, que pode acontecer de muitas maneiras, sendo uma delas a troca por alguma forma de trabalho. Porém, tudo é muito volátil.

Conseguir coisas é uma tarefa complexa, mesmo que haja a zona comercial, onde o indivíduo pode adquirir tudo o que quiser por um preço que é determinado por quem está vendendo. Lá, a pessoa escolhe o favor que é do seu interesse, mas o negócio depende do desespero do comprador e se ele pode, ou não, oferecer o que lhe é exigido. As trocas também podem acontecer de acordo com o que se tem para dar, como bens materiais, alimentos ou temperos. Algumas pessoas possuem apenas o próprio corpo para oferecer, o que sempre pode se tornar uma armadilha.

Existem personagens de impacto que nos ensinam bastante sobre o acordo. Um deles é Astur, o dono de Céu Azul, um lugar que funciona como uma casa dos prazeres, onde os visitantes pedem as realizações de seus desejos, contando com a presença de Anjos. Trata-se realmente de escravidão sexual, levando em consideração que todas estas pessoas foram compradas ainda crianças ou adolescentes. Astur, porém, não é apenas o dono desse lugar horrível, mas também trabalha como Cobrador de Acordos. Geralmente, ele oferece proteção às pessoas que moram nas redondezas de Céu Azul, mas também recorrem a ele outros indivíduos que possuem acordos em vigor ou vencidos. O grande problema surge quando os acordos se tornam posse desse homem. Inclusive, esse é o trabalho de Sarah, no livro. Ela é uma Garota de Astur, Cobradora de acordos.

 

 

 

 

 

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